domingo, 25 de outubro de 2009

RESENHA DE
"A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS",

DE JOÃO DO RIO

João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, nasceu no Rio de Janeiro em 1881 e lá morreu em 1921, um ano antes da Semana de Arte Moderna, movimento artístico revolucionário ocorrido na capital paulista. Ele assistiu à Abolição da Escravatura (1888) e à Proclamação da República (1889), episódios que trasformaram o perfil sócio-político-econômico, não apenas do Rio, mas de todo o Brasil.A "Cidade Maravilhosa", chamada "Cidade da Morte" até o início do século XX, foi capital brasileira de 1763 a 1960, quando a sede do governo federal é transferida para Brasília. A antiga alcunha mórbida decorreu das epidemias de febre amarela, varíola, cólera, peste bubônica que atingiram grande parte da população carioca, que já contava com aproximadamente um milhão de habitantes. O sanitarista Oswaldo Cruz realizou, na administração de Pereira Passos, prefeito do Rio durante o governo de Rodrigues Alves, de 1902 a 1906, um trabalho de controle dessas doenças: uma das estratégias foi comprar ratos! Além dos programas ligados à saúde pública, Passos promoveu inúmeras transformações urbanísticas sob os moldes de Paris. Esse plano de governo foi conhecido como "Bota-abaixo" pois demoliu casarões, cortiços, abriu ruas, alargou outras. O desenvolvimento na área dos transportes, da comunicação, da eletricidade, do saneamento é responsável por intensa urbanização carioca, mas houve consequências sociais drásticas. Cerca de 1600 velhos prédios residenciais foram demolidos na região central da cidade e, como não houve programas habitacionais suficientes para os menos favorecidos, iniciou-se o processo de favelamento no Rio de Janeiro. Em 1902, Paulo Barreto tenta se tornar diplomata. Mulato, obeso, homossexual, não consegue realizar esse propósito, pois o então Ministro das Relações Exteriores, o Barão do Rio Branco, posiciona-se de maneira preconceituosa. João do Rio investe na carreira jornalística: o livro "A Alma Encantadora das Ruas", editado em 1908, é uma coletânea de crônicas anteriormente publicadas no Jornal Gazeta de Notícias e na Revista Kosmos. E o que é uma crônica? Trata-se de um texto ligado a fatos do cotidiano. É que faz João do Rio. Quanto ao seu estilo, pode ser considerado um tanto quanto caleidoscópico, como a própria cidade documentariamente descrita por ele. Em predomínio realista, ora manifesta-se naturalista, ora parnasianista, ora modernista. A crônica, gênero textual em questão, é um traço modernista. Direciona críticas aos românticos e simbolistas, mas reconhece que, a arte popular conserva muito desses estilos. O próprio João do Rio, antevendo as iminentes mudanças no rumo da arte, afirma que "não estamos propriamente em um momento de arte pura." Esse era o pressuposto fundamental do estilo parnasianista, em destaque na segunda metade do século XIX. O Parnasianismo tem como características principais a preocupação formal, o vocabulário precioso, o descritivismo, a referência greco-romana. Tais atributos estão nitidamente presentes no livro em análise. Outro conceito pertinente a essa análise é o de caleidoscópio. Trata-se de pedaços coloridos de vidro, colocados entre dois ou três espelhos planos. Essa metáfora sugere que "A Alma Encantadora das Ruas" mostra o Rio em várias facetas multicoloridas. João do Rio divide o livro em cinco partes: A rua, O que se vê nas ruas, Três aspectos da miséria, Onde às vezes termina a rua. Na primeira parte, a rua é descrita de maneira evolucionista: "(...)cada rua é para mim um ser vivo.(...) Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue...(pp.33 e 34)". Na segunda parte, citam-se várias profissões informais: ciganos, que roubam e revendem; os belchiores, que compram roupas e as revendem; os selistas, que vendem selos de cigarros e charutos caros para serem reutilizados em marcas mais baratas; os ratoeiros, que recolhem ratos pela cidade e os vendem ao governo. Há também os fuzileiros; as meretrizes; os carregadores; os marinheiros; os bombeiros; os doceiros; os tatuadores; os vendedores de orações; os urubus (serviço mortuário); os vendedores de livros; os pintores; as lojas com seus nomes hilários; os traficantes de ópio; os músicos; os cocheiros; os foliões do reisado; os foliões do carnaval. Na terceira parte, detalham-se aspectos ligados à exploração das prostitutas, dos estivadores nos portos, dos imigrantes portugueses que extraem manganês nas pedreiras, dos menores; ora, trabalhadores, ora infratores. A mendicância, principalmente, por parte das ex-prostitutas, é descrita como uma habilidade cenográfica. De maneira naturalista, descreve-se uma zunga; isto é, um cortiço, uma hospedaria barata: "(...) não se podia andar sem esmagar um corpo vivo. A metade daquele gado humano trabalhava; rebentava nas descargas dos vapores, enchendo paióis de carvão, carregando fardos.(p.179)". Na quarta parte, vamos para a Casa de Detenção, em que as celas foram chamadas "jaulas" no livro analisado. O alcoolismo é apontado como a principal causa de prisão. Alguns alcoólatras estiveram no manicômio, antes da penitenciária. Já no século XIX, verificavam-se os mesmos problemas no sistema penitenciário brasileiro: superlotação, ociosidade, profissionalização dos leigos, promiscuidade, jogatina, tráfico de drogas, reincidência, falta de higiene... Havia, inclusive, um chiqueiro de porcos na Casa de Detenção do Rio de Janeiro. O que mais chama a atenção é a imunidade elitista, que impera até hoje: "Nem os moços valentes, nem os senhores respeitáveis, nem os jornalistas vão sequer à delegacia.(p. 205)" João do Rio exalta o detento desse início do século como um poeta que tem quatro ideias capitais: o retorno da monarquia, o apego à religião, o receio da imprensa, o desejo de liberdade... Alguns versos sugerem que havia discriminação contra os brasileiros, haja vista a presença de imigrantes no país: "Sou um triste brasileiro/ Vítima da perseguição/Sou preso, sou condenado/ Por ser filho da nação." Na quinta parte, instaura-se um Parnasianismo Moderno em que João do Rio, encontra a "Musa" nas ruas. É uma referência à inspiração que o cronista reconhece espalhar-se por todos os ambientes urbanos, independente da condição social ou étnica.Trata-se de uma espécie de mitologia popular, em que os deuses não têm poder econômico; são inferiores, mas declamam, cantam, pintam... Enfim, fazem arte: "(...) por que teimaremos nós em dizer que a poesia preferiu nosso cérebro ensaduichado em literaturas estrangeiras à alma simples do povo ignorante?"(p. 236).


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